Na literatura confesso: uma força me toma, prefiro aquelas que não tem piedade de mim. Fragmentos de um discurso amoroso de Barthes é um tratado sobre o intratável amoroso. Verbete a verbete ele lava as parcas esperanças daqueles que anseiam dele se curar, dilui o romantismo e com uma delicadeza quase cruel retira a poeira, que vira pântano e captura as relações, um tapa na cara que retoma que estar vivo, além de difícil, pode ser bom - o amor como uma estética de vida. Quem dele espera uma receita amorosa é arrastado ao caos, convidado a coragem de inventar com o corpo, na deriva dos tempos um amor que lhe caiba como coisa viva, perecível, finita, (e)terna, delicada e afiada, desenhada por criaturas de passagem que de mãos dadas se acompanham e esboçam a prórpia vida.
O discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber), mas não é sustentado por ninguém: é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus mecanismos (ciências, saberes, artes). Quando um discurso é assim lançado na sua própria força, na deriva do inatural, deportado para fora de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo que seja, de uma afirmação. Esta afirmação é em suma o tema do livro que ora começa.O Intratável - A afirmação: Contra tudo e todos, o sujeito
afirma o amor como valor.
Apesar das dificuldades de minha história, apesar dos mal-estares, das dúvidas, dos desesperos, apesar dos ímpetos de abandonar tudo, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor. Todos os argumentos que os mais diversos sistemas empregaram para desmistificar, limitar, esmaecer, em suma, depreciar o amor, escuto-os, mas obstino-me: “sei disso, mas mesmo assim...” atribuo as desvalorizações do amor a uma espécie de moral obscurantista, um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: oponho a tudo “o que não vale a pena” no amor a afirmação do que nele vale. Esta teimosia é a profissão de amor: sob o concerto das “boas razões” de amar de modo diferente, de amar melhor, de amar sem estar enamorado, etc., uma voz teimosa se faz ouvir que dura um pouco mais de tempo: voz do intratável amoroso.
(...) Há duas afirmações do amor. Inicialmente, quando o amante encontra o outro, há a afirmação imediata (psicologicamente: deslumbramento, entusiasmo, exaltação, louca projeção, de um futuro pleno: sou devorado pelo desejo, pelo impulso de ser feliz): digo Sim a tudo (cegando-me). Em seguida vem um longo túnel: meu primeiro Sim é corroído por dúvidas, o valor amoroso é incessantemente ameaçado de depreciação: é o momento da paixão triste, do surgimento do ressentimento e da oblação. Desse túnel, entretanto, posso sair, posso superar, sem liquidar; o que afirmei uma primeira vez, posso novamente afirmar, sem repetir, pois, agora, o que afirmo é a afirmação, não sua contingência: afirmo o primeiro encontro na sua diferença, quero seu retorno, não sua repetição. Digo ao outro (antigo, ou novo): Recomecemos.Citações de Roland Barthes em Fragmentos De Um Discurso Amoroso
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