Da noite passada, o dia se encerrou com a denúncia da folia circense - o doce da pipoca grudado no cachecol, a gargalhada ainda passeando no diafragma e a sábia pergunta da sobrinha (bichinho-criança) a desmontar um sistema de educação arcaico: por que a professora apaga letra feia?
Passear com quem realmente entende da alegria faz do sorriso sotaque, da cama, sítio de saltos, do ar vagabundo, despretensioso cata-vento - desmancha saberes, dos dentes, sentido de vida, tabu vira a utopia do corpo e a pele, lugar gostoso de morar. É interessante como com ela fico despudorada e confiante ao desaprender os rumos, os dias.
Ainda com dúvidas no tom conversamos sobre a dificuldade dos adultos em ralar os joelhos e a urgência de anestesiar a dor, sobre a inabilidade em ver os próprios garranchos, errãnças nas veredas. No circo, picadeiro dos por vires da infância, ficamos com as palmas coçando de muito aplaudir as cores, movimentos e palavras desconexas, música de sopro, chorei, porque gente que voa, tamburila meu peito, se isso acompanha dança e suspensão, meu corpo se oferece pleno para a passagem do onírico e meus olhos viram atrvessadeira líquida para a beleza de flanar. Ao final do encontro combinamos então que ela desautorizaria que as feias letras fossem apagadas e que em breve retomaríamos a prosa: desafio, ofício das nossas distâncias.
Desejei demais iniciar a semana na leveza e intensidade, tons do último encontro, contudo os olhos amanheceram com o cinza do dia, na concretude das vigas (ou vidas?) prediais, densidade do ausente das cores, corpo árido, umidecido na gelidez da fina garoa estilhaçando os poros, sorrisos amarelos pendurados na vareta das sombrinhas, urgência de não encontrar a vida para não desviar da pressa no caminho para casa.
Dias cinzas são zangas difíceis, desejosos de inexistência, podia ser roxo, graná, magenta, até amarelo. Sabe o que é? nunca esqueci das aulas de educação artística, suponho que distorci os ensinamentos, como quase tudo que chega no meu corpo; sempre imaginei o cinza como uma QUASE cor. Não é branco, junção de todas, ou preto, ausência delas, nem mesmo um tom; uma energia pretendente a qualquer coisa morna, mais ou menos, nem fácil ou difícil, quase transparente, palatável, que pára na garganta, sem força de se fazer engolir, ou para devolver-se ao mundo.
O equilíbrio dos tons me deixa com o apetite para dentro, sem desejo de cambalhota, distante da rua, varanda vazia em plena cidade; pessoas dispersas, fato sem acontecimento, falência dos sentidos, esbarrão sem encontro, ilhas separadas, existência sem suspiro, riso ausente - fruto da economia na expressão, mandíbula travada para o inusitado, cegueira sem olhos, espartilho a sufocar as costelas, flores estranguladas em gola alta e os encontros não acontecem.
Em dias de Terra da Garoa minhas pernas se arrastam num caminhar baixo, as durezas do chão me desensinam a dançar, desfaço as constelações que não aprendi, o silêncio chega e é a última palavra. É dia de graves dores, faço o dossiê dos meus defeitos, dos amores falidos, teço o inventário das minhas culpas, carimbo o obituário dos possíveis, velo a morte do meu pedaço cintilante, tamanho é o desagrego, que pouco importa aquecer a cabeça com o vermelho do chapéu - cinza é dia indiferente ao que vibra na vida.
Escrevo cartas para estranhos, visito passageiros, recuso ligações, não consigo começar um encontro, terminar uma música, existir é fato que me dói, meu olhar é tão antigo quanto minha juventude cansada, o corpo vira fiandeira do tempo adoecido na inércia em mim - tempos de ausência e distâncias, pedaços de angústia convulsionam por viver inundada na solidão das horas, tristeza, por DESPERTENCER. Vontade do sol atravessando os poros, do suor varando a pele, do quente do encaixe de dois, da água nadando no íntimo, da confiança na parceria, do mar ondulando o corpo, de companhia navegado a vida.
Faz pouco, para a surpresa das vísceras, vi no telejornal um nascimento. Uma criança de oito realiza o parto do seu irmão, ele conta: veio primeiro a cabeça que puxei com a mão, depois o corpo, minha mãe cortou o cordão e ele nasceu! Falava de fazer nascer, com a naturalidade de quem conta do carrinho de rolemã caindo ladeira abaixo.
Da apatia ao incidente de abismar-me, este menino pirilampo de viver, auxiliar na parição do seu irmão me arrastou, me arrebatou de vida. Soluço de sal, olho embargado, rosto com vincos lavados, a alegria de nascer foi que me tomou na neblina da noite. Das descobertas com o pequeno parteiro:
As cores me doem pela morte presente a cada instante, na traseira de um outro nascimento. Já o cinza resguarda o que não é anunciado; este tom é o guardião dos segredos privados, dos partos em maternidades, primo dos tons pastéis que ocultam as misérias e oprimem a potência da vida, me remete ao que iguala os homens em sua fraqueza, os fraterniza em suas desgraças e os libertam em seus ideais estáticos e homogêneos, de esperança, permanência, cura e paz; meio tom é neutralidade inexistente, é Zem barato, que retira a energia de uma cor que sempre há ao nascer, que diz que passa, que deseja equilíbrio, que separa, perfilando os tons das febres, que afirma a estabilziação dos timbres, que borda com harmonia os des(a)tinos, já que este é poluição visual, que desbota palavras, afetos e caligrafias tortas e feias ao seu modo.
Talvez o mais difícil dos dias griz seja desvelar, delatar que há cinzas em mim, em tom e morte, que eu também desejo abortar as feias coisas, desnascer as tritezas, precocemente cicatrizar as fundas feridas, distanciar as difíceis lembranças, despentecer aos amores abandonados e jamais esquecidos. O cinza conta das invisibidades que desejo ocultar e dias assim as escancaram janela afora, diante dos meus olhos, tropeços, gritos, desarranjos, meus borrões, correções, grifos, que nego, mas que me recuso apagar, porque também sou eu.
Isso tudo é máquina de fazer fantasmas, fantasias de (des)pertencer, de distanciar, de não querer partir, de não querer ser só, de não tombar, de não sustentar, agora, só neste instante não tive dúvida: não há outro jeito para a vida, senão ACONTECER, em todos os tons! Nascer é coisa bonita que arrebenta pra inaugurar, que arrebata a existência em seus inéditos, tem de ser gritada, molhada e aplaudida em todas as escalas e notas; existir em potência nascente é mais do que promessa, é o milagre humano, esta é a beleza presente nas cores, conta das nuances possíveis a cada instante. A distância que amedronta em dias assim está na neblina do chuvisco, é só o mistério entre o que se vê e o que se sente, uma afirmação do estranho em mim, outro, diferença que se processa a cada instante em nós. Cinza é só um rabisco - mágoa do céu em mim. Mesmo húmida eu PERTENÇO (in)definidamente, inclusive ao que nego, dentro é só um vinco do fora - é impossível não passar pelo que me avessa. Depois de grafar a tristeza no branco o cinza rabiscou todas as cores. Agora SIM! diz a previsão do texto.
Pertencimento imagético criado por Saudek

2 comentários:
Adorei o texto, tem imagens incríveis, mas ao mesmo tempo tão familiares!
Daniela, que coisa mais linda esse texto, eu o imprimi e mostrei pra várias pessoas do meu trabalho, me lembrou o filme "A excêntrica família de Antônia", o abraçar das várias estações... Falando de meninos pirilampos de viver, olha aqui mais um:
http://www.labirintosnosotao.com/2009/03/o-menino-e-cadeira.html.
Um beijo, muito carinho.
Postar um comentário