“Eis o que aprendi nestes vales onde se afundam os poentes: afinal tudo são luzes e a gente se acende é nos outros. A vida é um fogo e nós somos suas breves incandescências."
Tem outonos que é difícil dizer da gente, nem por falta de espelhos, poucas horas de terapia, ou de fandangos vida afora. Tem estações que a palavra falta, fala pelo que silencia. É macio deitar no tapete; ver do 23º andar os carros brincando de ser formigueiro; mergulhar os olhos na parede verde; falar com os passageiros; enrolar o cachecol em forma alguma; cuidar das novas ervas; fumar chocolate mentolado na narguilê; se emaranhar na vista das fitas da almofada amarela; abrir o decote numa segunda feira de sol tímido; conversar com Santa Bárbara sobre os rumos dos ventos e miraginar novos vôos.
É um corpo mais fino, lento, preguiçoso de entender, de boca aberta para as novas alquimias, ensaiando uma nova ginga. Converso sobre a saúde do Seu Francisco, peço o saca-rolhas ao desconhecido, choro com o sorriso da criança-vizinha; brigo, mas ainda me despeço do que não cabe; gargalho de bobas piadas; erro quando penso saber, caminho despretenciosamente, me comovo com os enredos da novela; finjo que habito os lugares onde trabalho, não por sacanagem, mas ali é só o solo parteiro de outros possíveis; faço comidas que recriam a duração de uma refeição, pinto a prateleira da cozinha, procuro um cão para adoção; fotografo, ainda de longe, respeitando o jeito de enlace da câmera aos corpos; a temperatura das noites me arremessam para outros tempos, do que foi ao que há – mas não sei dizer de mim.
Não quero as coisas importantes de audiência. Ainda bem que tem o Fabrício perguntando onde está o meu corpo; o Jonnatas, que me leva no apetite do seu cruzeiro pelos mares; a Bel que diz “um coração por dia”, a Pati que afirma que o seu é médio; o Henrique que me aconselha a investir numa plantação de corações e me faz gritar: “Eu tenho a força!”. Ainda bem que tem a Marilza desafiando a vida na dança; a Sheila que ouve minha ausência de olfato com sua escuta de reinvenção; a Ana que descobriu que o melhor jeito de brigar com as perversas instituições é se deleitando com o amor; ainda bem que tem a mãe (olhos de ternura) aconselhando: "vai dançar tua tristeza, Pretinha."; a Marga de olhos profundos e nada pacíficos me convidando à escrita das palavras; a Cindia que me ampara no desejo de que a vida fosse uma suruba sem despedidas; a Ze companheira de tangos e respiros; o Rodrigo com quem me caso a cada reencontro há 14 anos e queridos outros que não estão nestas letras.
A gente eu é difícil de contar porque é muita coisa, é me-mim-comigo-te-ti-contigo-se-si-consigo-eles-elas-nos, todo mundo morando junto na mesma casa, carne-lembrança, Terra abrigo. A borda é para a gente escapar, encontrar sem misturar, como rio que verte sem nascente. Tem uma pele que dobra para dentro, faz poros para fora, que tem um pé plantado no chão (ou no ar?), que guarda o peito de sentir, que arde no corte, que segura cabelos, que sente na nuca, afogando no molhado do rosto, na vertigem de um sorriso; cresci pensando que tudo isso era uma caixinha de fazer eus, mas não - corpo é morada que muda o desenho e o endereço ao esbarrar.
Às vezes algo se quebra no fundo dos olhos, é tempo de des-esperar, preciso descansar a mochila, deslocar as dores, porque qualquer literatura disponível é insuficiente para o novo trilhar. Passado o pesar, o corpo é com um outro ritmo, o da reivindicação de um tempo de dis-tra(i)cão como cuidado maior. Então retorno à perecividade dos tempos, ao vigor de outros respiros: meu corpo que era água retida, de cachoeira, mar, riacho, moringa de sangue, movimento-recusa, ternura de colo, força de briga, abraços-amparo, é corpo sem tino, se reinventando no encontro e no tento. Despertercer-me é percorrer outras idades, atravessar o quintal da cidade, autorizar que outras vidas me varem, porque ela o fará mesmo sem o pretenso consentimento. Tem dias que um-bigo não é suficiente, que o outro-corpo-amigo-de-mão-extendida é um jeito de falar da gente e a passagem possível para (co)existir.
Talvez: Umbigos venceremos!
(criaturas queridas: Vocês co-movem forças em mim!)
Citação de João Celestioso em Um rio chamado tempo, e uma casa chamada Terra de Mia Couto
Umbigo fotografado por Guta Galli
Um comentário:
Para você, beijos.
Por QUe EsCreVo? (...)
- Não, eu não sei porque escrevo.
A gente escreve, como quem ama,
ninguém sabe por que ama,
a gente não sabe por que ama,
a gente não sabe porque escreve. (...)
Clarice Lispector
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