terça-feira, 24 de junho de 2008

Memória de um futuro

Sempre tive corpo miúdo para memória larga. Um tom, uma calçada, a temperatura do dia, um objeto perdido, um rosto, a estampa no algodão do vestido, uma frase, qualquer ponto, pronto, sou arremessada na parede da memória, ainda que o retrato nada tenha a ver com o defunto; também não sei se as vezes alguns flashs de lembranças aconteceram, ou se simplismente acabaram de nascer ali com o sobrenome Memória e desembocam no futuro, como um dejavu; consequentemente, sempre estranhei, mas nunca achei inverdade quando ouvia qualquer coisa sobre pessoas memoriosas terem tendência ao ressentimento; assim como temia não ser verdadeira com a minha história. No clichê que anuncia que rememorar é aprender eu sou o apênce do engano, nunca consegui me ver como um tropeço do erro. Não porque não me pego revivendo dores, é diferente, mais que nostalgia; numa destas cadências chamei isso de saudades do que não vi(vi). Achava que era porque nunca me arrependi de um desencontro. Sempre gostei de passear na história, tirando as oficialidades dos fatos, transando com o meu corpo presente; gosto de pensá-lo como leito do que foi- vertente do por vir.

Minha memória não é a de um caderno-espiral, para distribuir e censurar as confissões, mentir sua extensão e abreviar o conteúdo. É de um caderno capa dura. Não consigo apagar uma lembrança, mesmo que seja dolorida ou humilhante ou os dois. Muito menos alterar seu número de páginas conforme as necessidades da relação. Não sou de riscar o que aconteceu para parecer mais maduro, ou eliminar as contradições e simular coerência. Inclino-me a conviver com as rasuras e insatisfações. O branco do corretivo sempre me irritou mais do que a mancha violeta. Alterar é disfarçar a carência. Alterar é fingir o que não foi vivido, antecipar o que não era hora. Falsificar-se compulsivamente. Não irei me vingar com as cinzas, arrancar as folhas que não combinam comigo, ou que me provocaram decepções. Não serei visto queimando fotografias, cartas e paixões numa lata de lixo, apenas porque não me servem mais. O que namorei vai me enamorar a vida inteira. Estará lá numa página definida, permanente, com a letra segurando as linhas. Todos os meus erros são esperançosos pela releitura.

E assim vida-a-vida a memória reinventa o acontecer, uma porção de re (e) encontros vão costurando, extendendo e distraindo os tempos, para o engano dos calendários. Há pessoas e paisagens que quando conheço tenho certeza sem razão de que sempre desejei viver acompanhada delas. Um pai desvivido me extende colo num sonho, um primeiro amante se enamora da nossa amizade, os filhos que ainda não tive gargalham na cova do meu queixo, eu e uma amiga de colégio emulherecemos nas recordações-adolescentes presentes no chá de cozinha, uma cambalhota no tapete, um sinal pregado como vinco leve na pele do rosto e as idades se perturbam na superfície plácida do olhar. Me contenta quando ouço, vivo ou leio algo que me carrega para esta familiaridade, pois se inaugura um tempo de revisitação e celebração - do ido ao que virá; ecos assim reciclam, tiram do lixo o que não mais serviria, fundam o novo de novo, a esperança faz um filho na realidade - fato é a vida acontecendo e assim foi me acompanhar de Carpinejar (na citação acima, disponível em http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br/). Memorãnças também engendram novos encontros, quando ecoa não tem jeito - até erro vira composição.
Agora, na beira de tempos ensimesmados, quando o maior combate-vitória é somente (co)existir com e ao abismo de um desencontro, vivo o desejo de uma sabedoria insuficiente para desconhecer como se despacha o passado, uma terra com densidade de tatame que dê molejo à lembrança doída e que a poeira da história seja sacudida na pirueta de um corpo forte, delgado e generoso, que geste sustente a força de cada vida que nasce a todo instante, inaugurando idades, mesmo que seja no caos. Ainda neste enredo me supreendo quando atino que em breve vou conhecer o Rio Grande do Sul, terra de longes e horizontes, mais do que co-incidência isso deve ser mesmo é memória de um futuro. Termino esta saudade ouvindo o refrão: nem toda morte é dor - Milonga por Rodrigo Maranhão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que bonito, obrigado, estou sendo imaginado pela tua memória. beijos