quarta-feira, 22 de abril de 2009

Sonho procura um Terreiro

Sempre gostei de dizer que meu pai se chama Luiz Gonzaga, caboclo, mestre de obras e que tudo isso era legado do meu avô Antônio, serralheiro, negro, ambos nascidos em chão árido, seco, de cabra macho, onde quem não é poeta, nem homem é. De orelhada descobri que ele assim o registrou, de peixeira na cintura, com o nome em homenagem ao compositor das mesmas veredas, afirmando que já havia batido muitas esporas pros seus cavalos.

Parceria insólita com a minha mãe, de nome religioso, Maria Aparecida, galega, de lendas mau contadas e fugidas de um pedaço Judeu da Alemanha para o interior de São Paulo. Por muito tempo a ouvi falar de suas venturas religiosas na busca da cura pra vida dura. Lembro que uma vez, em um daqueles comuns adoecimentos da infância, até em uma benzedeira de Terreiro ela me levou, era uma senhora negra, que dizia coisas estranhas e me segurava pelos pés, pra desvirar o bucho e no dia seguinte, depois de algum suador, nem vestígios de febre ou dor. O curioso é que nestes des-caminhos da vida recentemente, ao acaso, reencontrei este terreiro e com a infante memória, que durante algum período havia uma precária tenda circense em terras vizinhas, onde se fundou meu gosto pela alegria do picadeiro.

Desde a infância ouvia a boca miuda boatos de que meu pai havia sido pai de santo e tenho vagas lembranças do tal terreiro, que nunca sei se inventadas nas funduras do meu desconhecimento. Uma vida toda, sempre que pergunto, se repete um belisco e uma voz travada no canto da boca, daquelas que repreendem os devidos sigilos, como se deve fazer, dizendo que isso não é coisa que preste de se falar, pois botou nossas vidas em desgraça plena, e assim fiquei sem saber.

Anos passados até pra Bahia eu fui, buscar alguém que pudesse recontar minha negritude nublada, olhos e cabelos que velam nariz e bocas anscestrais. Bahia, chão onde aprendi alguma ginga da alegria, dança bonita, triste, livre a custo de muito sangue rola(n)do no Pelô, no tabuleiro entre o acarajé das baianas. Lá me apresentaram Mãe Detinha, senhora antiga, de cabelos grisalhos, roupa branca, olhos encobertos pelo tanto tempo, voz mansa que anunciava que não seria possível colocar os "buzo", porque em semana de festa de orixás, as obrigações são outras. Desejando fazer valer minha visita, contou-me sobre Iroco (orixá do tempo), história-universo com interpretações polêmicas entre os que ouviram, despediu-se, falando-me ao pé do ouvido, em segredo: "Fia, cê sabe o que precisa para retomar tua vida".

Quando as coisas do peito apertam a alma me abrigo na ternura e aposta - lembrança dos negros olhos. Pois bem, no ritmo do aconchego, mãe Detinha habitou um sono meu, pra não me fazer dormir. Sonhei que ela então, finalmente colocava os "buzo", um deles me trouxe cabalhota no estômago, estava virado, quase tombado e como quem gosta do desvio, foi sobre ele que perguntei. Era conversa entre mulheres negras a que procedia. Enquanto lembro, cantarolando, converso escrevendo: "Afrequetê, eu vim te ver e sem querer mergulhei fundo... Xangô já cansou de lhe dizer que teu calor é quem faz teu mundo".
Cuidando de qualquer minha pre-ocupação sinalizava que eu não me assustasse ou amaldiçoasse o jeito das coisas reverssas, aquelas que desentendo, porque vida é paisagem larga mesmo, lugar de se ter isso no meio de tudo; com os avessos e diversos diante dos olhos aprendemos a contemplar, se embeber, a convidar a coragem e apostar no que os poros ainda desconhecem, também porção de nós a se reinventar no tempo, abismando-nos em nossos delicados corpos. Cerrou a prosa-leitura assim: e se renunciamos ao desconhecido por medo, nunca viveremos algumas necessárias distâncias dos amores, próximas paixões, profundos (des)afetos, o que a vida tráz pra gente, o outro fica aguado para o nosso gosto, a escuta fica cocha, o desgosto se aproxima e o mau gosto nos toma.

Assustada com o desatino do sono, o interrompi acordando, tem vertigens que só são possíveis a conta-gotas, aos poucos, um tanto por noite. Tateava meu nariz, minha boca, a maçã do rosto, pedaços anscestrais de mim que conseguia acessar na madrugada. Percebi uma antiga sensação, presente como primeira: um tanto de Oxum, Iemanjá, Iansã, Xangô, Cabocla e outros desconhecidos guerreiros me amparando no breu, naquela noite e em toda vida, quando me despi das religiões, cavucando forças pra nunca mais evocar o Deus; nas cisões amorosas onde a raiva coabitava estranhamente com a ternura; nas quebras de pensamentos e práticas cotidianas, neste fio de loucura e vida... cada um me acolhendo por vez, ou todos juntos.

A vida é tão bonita que estranha, ela independe do meu entendimento para continuar a acontecer. Ultimamente estava assim, só sentindo que bons temperos, banhos, ervas, lavanda e velas curavam um bocado do corpo esfolado, da alma cansada, lavando as palavras, impasses, curando os medos, os pesares. Conchas de boa água além de matar a sede conta dos tempos de encontrar, que vai, vem, nasce, suja, se lava, passa e é passado, como as águas do São Francisco.

Essa noite me vesti inteira de todos os mistérios roubados ao longo da vida, aqueles que contei lá em cima, os que ainda desconheço. Sou mulher de fronteira, branca, negra, mestiça, cigana, clandestina. Agora já é olhos de amanhecer, passagem dos tempos, e descobri que nestas linhas onde me (a)risco me refaço, este híbrido sem nome é meu remanso, atracada, derivando, assim aprendi a rir, a brigar, a gozar, a acompanhar o que é tímido respiro, inclusive esta solidão primeira de história recusada, desta falta de identidade ou lugar, corpo também é território de nascer, marca sagrada de existir. Parece que é entre fendas que se inventa, se sonha, se vive e se ama. Sonho procura um terreiro-picadeiro pra dançar estas velhas-novas porções, descobertas se inventando, amanhecidas e acolhidas no tempo em mim.
22/02/09

Um comentário:

priscila tamis disse...

és linda,dani... trazes no corpo guerreira mestiça de todos os tempos. Invoca a história convocando afetos.