sexta-feira, 22 de maio de 2009

Cidades do meu corpo

Tem coisas é que começam pelo meio, desembarcando sem prontidão mesmo. Como a zanga destes que desentendem as oficialidades de existir e insistem no tempo. Primeiro aquele braço destendido em meio a vala. Os gritos ancestrais tentando desdoer, sem nem ter aprendido a confiar. O homem que na sala soluçava como quem devolvia ao mundo o amparo de um abraço ofertado. O respiro do rosto pequeno tentando sustentação, pés e danças depois das asas. O desnudo desenho do sulco no caminho da perna, contando das violentas derivas e ausência de terras. O embargo no estômago diante da larva denunciando a insuportabilidade do meu também nascer. Depois a tempestade que tragou a raiz da guia e escarrou a árvore na avenida, zombando da urgente ânsia humana... tantos fins desistidos sem trajetos. Uma vontade se repete e quem me bate é a vida: desejo de acreditar na orquestra dos afetos, da melodia que se abraça no elo, no tempo. O orgulho secretando o intenso, a presença desertando o olhar e a pergunta que não cala: o que tem-se feito?

Há qualquer coisa de movimento no sutil e uma delicadeza e tanto numa violência que não pára de mexer dentro da gente. Algo clamante de encontro, encorpando, passeando, ventre prenhe que gesta miríades de tempos, afã desiludido que ainda chupa a sobra do gargalo da noite; abraços ainda nem vindos; um galope sem cavalo destino ou destinatário; já não é um amor, uma falta, é como um trote desamparado que deseja não falecer, que se busca algo de morto é só pra sentir a contextura de querência, ódio e outros avessos do humano.

Frequentam-se esquinas onde servem cevada com ou sem poeira, onde dizem não saber, porque é charmoso uma liberdade que finge que vai, enquanto não se afirma, acreditando que o fundo já volta. Já não se faz contato em nome da preservação da própria espécie e do umbigo, pois autonomia já é quase verbo ditador nos manuais de ser. Há também das alegrias fáceis e baratas tingidas de buracos e brincos na carne do asfalto, cabelos irregulares, tatuagens na pele - feridas de guerra contemporânea trajada de radicalidade.

Ouço de dores, nomes sofisticados para porosidade ausente, escamas intumescidas e couraças ressecando a epiderme. Parece também haver no corpo uma pressa, medo secretado na paragem, travestido de coragem blindada, quarto que anestesia, varandas de portas amordaçadas e salas de não estar, casa que decoramos e não nos aventuramos a entrar, porque nela pode ter algo de umidade, de vidro estilhaçável, contado do elo macio e necessário que também se rompe, arrancando telhados.

Vendem-se felicidade em cápsulas e abortam-se amores, já que Fim é o destino de toda transitoriedade. Uma decisão corajosa e salvadora de antemão, palatável-preguiça-aceitável que evitam as dores e cicatrizes do depois. Poupar o corpo agora para não ter que distender o movimento da perna e derrepente, mesmo ele sendo maior do que o suposto, constatar que não é o suficiente, pois não há salvação para verves e carnes. Tem-se disfarçado interrupções sob o argumento de multiplicidade de oferta, fraqueza de corpos e imprevisibilidade do acaso. Esgarçado tramas inférteis noticiadas sob o nome de memória, tolerância, carma infinito, paciência e asas machucadas.

Conversamos de amenidades para indiferenciar o assombro do que pode ser complexo, que largo é aquilo que alegra, escandaliza, mostra o frágil, força nascente. Complicamos as falas e inventamos demasiados excedentes para não pronunciar o mais temido do amor: sua precisão de acontecer!

Uma perna firmando um passo, depois o outro, uns adiante e já não somos mais os mesmos - alguma rua já nos atravessou. Falamos da academia pra não dizer do desasssossego do que não sabemos; da cidade pra não desvelar a inabilidade de tecer um convívio. Afastamos-nos em silêncio para que uma das vozes não denuncie um pedaço de aposta não quer partir. A gente briga pra ver se convence que vai sentir menos falta, porque afinal se a briga ameniza a saudade, diminui o amor. Antecipamos a despedida pra inventar que não foi, fundando o eternamente inviável.
Falamos de inteligentes ciências pra não vincularmos o que é sangue; da dureza do asfalto pra não lembrar que mesmo as árvores precisam do calor, da terra aninhando a semente na fecundação dos possíveis. Desqualificamos a desmesura do outro, pra e recusar que estivemos, escondendo que amar é o destino das coisas vivas. Uns dizem de fraqueza, outros de ausência de prontidão... Algum sabor de vaidade a espera por alguém que nos escolha, enquanto nos resguardamos pra não vazarmos do outro, em nós - descuidos arreganhado do que sobra, prosseguido na distância, é como morrer de fome no meio do banquete.

No meio de tudo que se parte, há algo de só que não caminha desacompanhada - abraços inteiros. O corpo agora acolhe o quase-tudo, amando as lacunas, os ardis, os vazios, dores e estrelas. Convido alguns poucos amigos, Cazuza, sinais, planos, vinho e (in)ventos. Os outonos são os mais tímidos por aqui, passo a fumar e ver, porque com os fins de tarde magenta também se abisma. Há uma pele que se torce fora, mas se refaz é dentro mesmo. Algo de quieto, violento e silencioso, que contabiliza as palavras pra não economizar no intenso, uma vontade espessa e gasoza que rasga onde não cabe, invenção de veias pra não intumescer o afeto largo.

Um imenso de invisibilidades transvasando o suor da mão, respira fundo, trêmulo, que segue-indo. Um jeito querendo lacear as tramas sem esgarçar o infecundo, deixando o sensível jorrar no colo, pass(e)ar nas horas, correr no espaço, lançar-se no tempo, apostando na curva - alinhavo do que vai -tessitura do que volta.

O que fica? E os "por quês"? talvez o dia de alguma idade traz ou não, já não se trata da desimportância do fortuito, é que agora uma outra já faz morada, é a que escreve, a que imberna gestando cios, a menina que chora acalantando vontades, mulher pequena que nasce de estreitas ancas, esperanças paridas de mútiplas maternidades, danças acabrinhadas comprando lírios na noite, tragando a nascente do vento, desdobrando o desamparo, desvio da história; víceras odiando o orgulho que apequena os possíveis, subtextos de não estar, avessando o olhar em luaridades que se embreagam inteiras antes de chegar em casa. Não são mais pontes, barreiras ou paredes, agora é o legado desejado em outras horas: alma toda nua, travessias de pessoas, ruas e avenidas se fazendo esquinas na cidade do meu corpo.

Um comentário:

Kely Cristina S. Felício disse...

Dani, querida, que lindo... Temos conversado tantas dessas coisas... Me lembrei de uma fala da minha terapeuta, também Daniela, "de tudo pode um humano fugir na vida, menos da sua necessidade de amar". Assim como vc diz que amar é o destino das coisas vivas... Nos tropeços e avessos, estamos amando, de alguma maneira, incompreensível, amamos... Bj. Kely