Trabalho presentado no seminário corpocidade-UFBA/2012
Vídeo-ensaio em ecologia urbana:
políticas narrativas e
problematizações no fluxo corpo-cidade-saúde
Daniela Patricia dos Santos
Priscila Tamis
Apostando em uma poética-procedimento e na indissociabilidade
entre os conceitos e experiências como produtores de cultura, investimos na
criação de um vídeo-ensaio em ecologia urbana, que sonda as políticas
narrativas e problematizações no fluxo corpo-cidade-saúde.
Enquanto cartógrafas-psicólogas-pesquisadoras criamos uma
metodologia que possibilita a construção de uma narrativa audiovisual e
escrita, tecida de fragmentos das respectivas experiências profissionais. Do
deslocamento de olhares destes corpos transitantes com outros corpos transitantes
encharcados de histórias, possibilidades,
afetos e transversalidades. Encontros que anunciam suas
inquietações e pensamentos com a cidade a partir da produção das sonoridades
urbanas; das ecologias vivíveis nos diferentes espaços; das produções de si e
do outro no encontro psicoterapêutico e nos inusitados da disponibilidade vida
afora; da criação literária e fantástica entre concretos, avenidas e afetos;
dos roteiros, desroteiros e imagens fundados no cotidiano. Como é andar pela
cidade com essa força erótica, esse apetite, essa ampliação da vontade, esses
muitos e esse cansaço?
Neste caminhar, a captação de imagens se dá como
desembaraçadora das linhas dos processos de criação – linhas de visibilidade,
de enunciação, de força, de subjetivação. Deleuze nos conta que é preciso
extrair das coisas as suas visibilidades e invisibilidades. É essa atenção que nos
acompanhou, engravidando
o olhar mesmo quando não havia câmera. Corpos nas ruas, câmeras na mão, dias de
muito trabalho e noites de pouco sono. A partir de encontros com pessoas
queridas e outras desconhecidas disparamos conversações e partilhamos ranhuras
de olhares atentos para a cidade. Processos que, além ou aquém da imagem,
inauguraram movimentações, co-moção, desvios, mudanças de rotas, novos desejos
e reafirmações das sutilezas do vivido. Matéria-prima para produção de um
discurso que se esboça a partir da experiência, redobrando-se sobre a própria
fragilidade.
Corpos anônimos dançantes; passantes desconhecidos. Estação
da Luz; dia do graffiti no Bixiga; discussões e afagos no buteco da praça
Roosevelt; parque da Água Branca; praça Pôr-do-Sol; cafés, vinhos e jantas
acalorando as produções; avenida Paulista; metrô Sé; piano e risadas em
público; praça e avenida 13 de Maio; casinhas aconchegantes; Centro Cultural
Vergueiro; telefonemas no meio da noite contando o que alguns tempos e espaços
não possibilitaram. E a pergunta-amolação que não cala: “não existe amor em
SP”?
A aprendizagem de edição de um vídeo-ensaio é a continuidade
de um processo de afinação e deslocamento do olhar e da escuta, para tudo que
está vivo e disposto ao sensível-disponível dos corpos no espaço. Discursos que
se desfazem, imagens que se desviam e temas que se repetem, entoando a fala e o
pensamento.
Cidade, risco, dificuldade, saúde, heterogêneo,
subjetividades, criação, encontro, trajeto, caos, disponibilidade, vida,
atenção, relação, cotidiano, corpo, parceria, conexão e cidade.
Todo o percurso técnico,
cenas, relatos e imagens captados, partilhados e conectados compõem uma
política da narratividade, que busca afirmar a vida e aprimorar as perguntas,
antes de tentar qualquer resposta. Como contamos nossas histórias, nossas
relações e produções em saúde? Como nos posicionamos em relação ao que
contamos? Nossas narratividades não estão desarticuladas das políticas em jogo
– políticas de saúde, políticas de pesquisa, políticas das subjetividades. Como
estamos sendo provocados em nossos encontros? De que saúde falamos e qual vida
afirmamos?
A produção de um vídeo-ensaio como método cartográfico
diz da criação e travessia de uma linguagem complexa, de uma abertura essencial
de si, desejando o desconhecido, a incerteza e dissolução do ponto de vista. Uma poética-procedimento do equilíbrio no incerto, da
desnaturalização dos acontecimentos, que possibilita novas configurações e
apreensões desse imenso que pode ser um corpocidade, distendendo-o, dobrando-o,
amassando-o.
A cartografia como uma
inscrição provisória no tempo admite arranjos e desarranjos constantes, o não
saber, a intervenção sem garantias. A captação de imagens e edição, enquanto
processo cartográfico, nos convoca a percorrer os espaços de ruptura,
desaprender os já estabelecidos, aguçar as sensações, atentar-se aos detalhes,
abrir o corpo, tornando-o passagem das vozes do mundo. O método vai se
arranjando e rearranjando no acompanhamento dos movimentos das subjetividades,
das saúdes existentes e dos territórios.
Saúde que não é só cura ou
ausência de doenças, mas produção e afirmação de vida e diferenças.
Subjetividades que são constantemente as possibilidades de diferir-se, a
invenção e criação de si, do mundo, de mundos no mundo.
Um corpo que se inscreve numa ecologia urbana dos afetos. Uma
saúde que se recria enquanto conceito e possibilidade de existência viva, ultrapassando
os limites dos consultórios e settings, derramando-se nas ruas, metrôs, trens,
ônibus e praças. Ampliamos assim, nossas práticas e cuidados na relação com
tudo o mais que atravessou nosso caminho, fazendo saúde pública a partir de
relações micropolíticas com a cidade. E da força-intempestiva e
delicadeza-abrigo forjadas em cada encontro, tecemos uma clínica ampliada da
arte.
A abertura de inscrição para os diálogos junto ao laboratório
CORPOCIDADE acerca de metodologias de apreensão de experiência da cidade se
apresentou, enfim, como um convite para a criação do vídeo-ensaio em ecologia
urbana e imbricações em políticas narrativas e problematizações no fluxo
corpo-cidade-saúde. Aqui, pensamos de maneira relacional saúde e
subjetividades, através de uma tentativa cartográfica dos conceitos na vida.
Ousamos esta narrativa tendo como referência as próprias práticas e as práticas
e discursos de amigos e parceiros de trabalho e estudos. Este é o intento de
uma narrativa dos atravessamentos, da transversalidade dos conceitos, das
práticas por vezes acolhedoras, por vezes violentas: o movimento de uma
abertura comunicacional.
Como nos conta o poeta João do
Rio,
Para compreender a psicologia da rua não basta
gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É
preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um
perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e
praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o
exercício?
3 comentários:
Compor juntos, recriar, deixar passar um tempo puro, o do cacontecimento, o do vivido...assim são as afecçoes dos corpos na cidade..corpos vivos..corpos inertes, mas com vida...com memória....sons, cores e cheiros que nos afectam e nos fazem instaurar devires....tempos difusos..corte e perfurações no cotidiano de nossas vidas, assim pode-se reiventar novos jeitos e possibilidades de estar, de passar; um rastro de vida....e já não somos mais os mesmos, o espaço também não e todo e qualquer que souber ou diria roubar destes microacontecimentos a vida que pulsa...adorei o video e as reflexões sobre o trabalho.
Paulo querido. Isso que se fez junto, nem adiante ou depois, mas com e sob o corpocidade é o que se e nos leva. Pequenos e aos muitos, fragmentos nascidos da experiência são os lastros a fortalecer, reiterar os dias e nossos afetos transitantes. Um passo a frente, um atrevimento se cumpre e o corpo e a cidade já nem são mais os mesmos. e(n)ternecida com a nova parceria.
Dani querida,
Acabei de assistir seu video-experimentação e fui completamente atravessada pelas imagens e narrativas. É a cidade que invade o corpo ou é o corpo que invade a cidade? Acho que estar na cidade é sempre invadir o espaço do outro e, ao mesmo tempo, sempre ser invadido por ele. É impossível não produzir encontros, bons ou maus; é impossível não se anestesiar diante de tantos afetos e fluxos do mundo sendo produzidos e circulando por todos os lados.
Adorei a composição das imagens, músicas e narrativas. Dá vontade de extrair, de cada cena, uma série de outras narrativas.
Por que vc não aproveita toda sua potência criativa e sensível e faz um curso de documentário para explodí-la ao máximo?
um beijo grande, Adriana
E
Postar um comentário